sexta-feira, 5 de junho de 2020

Os Desajustados


 

Para quem não conhece, “Tetris” é um jogo eletrônico tipo quebra-cabeça, formado por peças que vão caindo pela tela e o jogador tem que ir encaixando as peças até que se forme uma linha perfeita na parte de baixo da tela. Quando formada, esta linha é eliminada. Se o jogador não for conseguindo eliminar essas linhas, as peças vão amontoando até chegar ao topo da tela impedindo que mais peças caiam (nessa hora o jogador perde o jogo, pois não conseguiu encaixar as peças corretamente). Este jogo foi popular nos anos 90 aqui no Brasil e muita gente jogou, inclusive eu.

Analisando esse jogo lembrei-me de algumas situações em que as peças das nossas vidas não se encaixam. E nessa hora estamos deslocados, não correspondemos aos padrões que esperam de nós. Todas as outras peças bem encaixadas olham para nós com desconfiança e até desprezo. A engrenagem está andando, todos se sentem confortáveis, mas vem aquela peça deslocada e acaba com a paz de todos. É fácil elas aceitarem uma peça perfeita que caiba no espaço que falta, o difícil é aceitar uma peça mal colocada.

A sociedade vive em uma bolha de perfeição, de comportamentos adequados, de pessoas que são exemplos de algo, de família e de certo e errado. Os chamados desajustados vivem à margem desta sociedade, tendo que conviver com o preconceito, com a discriminação, com o isolamento (não esse isolamento social que vivemos). Alguns convivem com a culpa de serem diferentes, pois simplesmente não são aceitos no meio em que vivem. Esses desajustados se forem fracos, vão sofrendo, sofrendo e sofrendo mais um pouco, até que talvez não aguentem.

Os ditos perfeitos vão cada vez mais expulsando os imperfeitos para fora dos seus convívios. Vão os ignorando, vão evitando contatos e preferem não conviver. Os ajustados não querem ver sua vida bagunçada por algum desajustado, o conto de fadas de uma vida perfeita não pode ser desconsertado e nem estremecido por alguém que pense diferente. A diversidade e a pluralidade de pensamentos não podem intervir em uma vida dita “perfeita”. Ou você, desajustado, se molda à vontade da maioria, ou você não servirá para eles. Há séculos as pessoas vivem assim, aceitando só o que foi-nos dito que é normal e repugnando aquilo que é diferente. O preconceito não é só contra cor de pele, é também contra pensamentos e atitudes que diferem da maioria. Se a maioria de um determinado grupo pensa de uma forma e alguém que seja considerado um desajustado dá alguma ideia diferente, é prontamente descartado sem sequer pensarem no que ele falou. Assim ele vive cada vez mais à margem deste grupo.

Muitos desajustados do passado são hoje considerados grandes gênios da matemática, da física, da literatura, música, cinema, política, etc. Nesses casos, aqueles que eram considerados errados agora são exaltados pelos mesmo que os criticavam. Acontece que, nem todos os desajustados conseguem alcançar um reconhecimento desse tamanho e vivem cada vez mais isolados, mesmo vivendo dentro de uma sociedade. Essas pessoas não têm voz onde estão, não têm poder de influenciar, não têm poder de conviver ou de conquistar a empatia da maioria “perfeita”. Os ajustados, na maioria das vezes, sabem olhar muito bem o erro dos outros e minimamente os próprios erros. Sabem como ninguém apontar o dedo, mas se um desses diferentes ousar lhes apontar o dedo, o leite azeda na hora.

É a grande hipocrisia da humanidade que aprendemos desde criança a aceitar e ter como certa. É o grande círculo do preconceito velado, do fingir que não viu, do fingir que não entende. É esse mecanismo incrustrado na convivência das pessoas que vai deixando o mundo e as pessoas cada vez mais individualistas e separadas, cada um vivendo uma verdade. O pluralismo de ideias, de pessoas, de raças, de cores, é o grande presente que a vida nos deu, e quanto antes aprendermos a usar este presente para o bem da humanidade melhor o mundo estará (ser diferente não quer dizer ser errado).

 

João Pinheiro

joaozinhopinheiro.escritor@gmail.com

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